O teletrabalho – Revolta dos códigos contra os fatos

Em sentido inverso ao quanto aqui intitulado, nos anos setenta, o filósofo francês Gaston Morin, hoje quase centenário, e conhecido como filósofo da complexidade, examinando o descompasso, o gap ocorrente entre as condutas socialmente reprimíveis em um dado momento histórico até a sua conceituação legal pelo direito positivo de um país, acabava por constituir uma “verdadeira revolta dos fatos contra os códigos”.

O avanço tecnológico das duas últimas décadas, sentidamente nos países mais ricos do ocidente, já havia incorporado ao mundo do trabalho, em escala considerável, o Teletrabalho, o home office ou trabalho a distância, em distonia com o regular e ancestral trabalho presencial, nascido característico e preponderantemente a partir da revolução industrial inglesa.

Presente em terras brasileiras não há pouco tempo, o Teletrabalho, a despeito do massivo avanço tecnológico em todas as áreas do conhecimento humano, sua ação mais incisiva era resistida em nosso meio jurídico com sua aplicação mais generalizada, em razão da postura pouco maleável da relação Capital X Trabalho, face o primado da administração patriarcal, hierarquizada, fiscalizada e subordinada.

Agora, em tempos pandêmicos, o mesmo Morin, atento às mudanças sociais e as novas formas da relação de trabalho, em entrevista ao jornal francês CNRS, em 09.04.2020, assinalou; “Nosso sistema baseado em competitividade e rentabilidade geralmente tem sérias consequências para as condições de trabalho. A prática massiva de teletrabalho causada pelo confinamento pode ajudar a mudar o funcionamento das empresas que ainda são hierárquicas ou autoritárias demais’.

De fato, a pandemia acabou por acelerar aquela que era uma tendência no âmbito do trabalho forçado – patrão e empregado, a uma rápida adaptação de sobrevivência, seja do emprego, seja do próprio empreendimento.

Por conta disso cuidou o legislador de, antecipando-se aos próprios fatos, regrar de forma mais detalhada e tipológica, esse novo formato de prestação de serviços subordinados, porém sem o componente presencial outrora indispensável, hoje praticável remotamente ou a distância – o teletrabalho.

A reforma trabalhista de 2017 (Lei 13.467/2017) introduziu um novo capítulo na Consolidação das Leis do Trabalho dedicado especialmente ao tema: Capítulo II-A, “Do Teletrabalho”, aditando os artigos 75-A a 75-E para estabelecer sua tipologia legal como sendo “a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza, não se constituam como trabalho externo” devendo-se, assim, entender por trabalho externo aquele onde os empregados, que pela natureza mesmo das suas funções e tarefas, não têm um local fixo de trabalho para a prestação dos serviços. 

A rigor, a previsão legal para o teletrabalho já se encontrava no artigo 6º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que afasta as distinções entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estivessem caracterizados os pressupostos intrínsecos da relação de emprego. O parágrafo único do dispositivo, introduzido em 2011, estabeleceu que “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”.

Assim sendo, o novo regramento estabelece que embora o trabalho seja realizado remotamente, não há diferenças significativas em relação à proteção ao trabalhador, vale dizer; os direitos são os mesmíssimos de um trabalhador comum; com direito a CTPS assinada, hoje eletronicamente, férias, 13º salário e depósitos de FGTS.

Quanto a efetivação do tipo de prestação dos serviços por teletrabalho a nova legislação estabeleceu requisitos cogentes cujo desatendimento poderá implicar em nulidade com repercussão indenizatória para o empregador.

Como esse novo tipo legal importa alteração substancial do contrato de trabalho, a própria prestação dos serviços, tanto demanda a intermediação da entidade sindical, quando se busque alcançar um grande número de empregados pela convenção coletiva, ou pela via do acordo individual, por mútuo consentimento, que se exige escrito, entre empregado e empregador, com a exigência de que sejam escandidas as funções e tarefas que serão objeto do labor remoto.

Deve ficar esclarecido que o trabalho remoto, onde quer que seja ele prestado, em casa (home office), em coworking, em trânsito, etc., o local contratual da prestação dos serviços será, sempre, o da empresa.

Na hipótese de estar em curso a relação empregatícia, tal alteração substancial deverá ser efetivada mediante aditivo ao contato de trabalho onde conste disciplinada essas alterações e, acaso houver necessidade de retroversão do regime, tanto necessitará que o empregador comunique ao empregado tal decisão, no prazo mínimo de 15(quinze) dias, havendo a alteração de ser registrada na CTPS.

Aspecto importante a ser considerado no trabalho remoto diz respeito ao controle da jornada laboral que constitui, enquanto fiscalização, um dos elementos substantivos da relação subordinada.

A nova legislação incluiu um inciso III ao art. 62 da CLT para ali inserir, como uma das exceções ao regime geral de jornada dos trabalhadores brasileiros, o teletrabalho, vale dizer; sendo um labor tipicamente externo, fora da sede do empregador, obvia-se a impossibilidade, em princípio, de sua fiscalização, o que retiraria dos empregados sob tal regime, a possibilidade de percepção de horas extraordinárias e do adicional noturno.

Dissemos em princípio conquanto em havendo, no campo probatório, a possiblidade de tal fiscalização efetiva ser aferida e comprovada, não mais será impossível a concessão daquelas verbas adicionais, ainda quando tal possibilidade, examinadas naquelas outras exceções legais, já foram objeto de deferimento em precedentes do C. Tribunal Superior do Trabalho.

De referência aos equipamentos de informática a serem utilizados, o contrato de trabalho ou seu aditivo devem prever de quem deverá ser a responsabilidade de prover e dar manutenção a tais equipamentos. Sendo do empregador a única disposição específica é que os equipamentos não podem ser considerados como remuneração do empregado, isto é; não pode ser agregado como “salário utilidade” do empregado, com suas consequências legais, muito menos ser descontado algum valor do empregado àquele título.

Aspecto não menos importante ao qual devem estar atentos os empregadores, diz respeito as regras de segurança e medicina do trabalho na prestação de serviços a distância, ou remota.

Como o empregador não terá condições de fiscalizar a própria prestação do serviço haverá possibilidade do surgimento de moléstias ou doenças do trabalho resultantes de desatenção à ergonomia laboral, além de riscos decorrentes de labor noturno ou em turnos ininterruptos de trabalho.

Para tanto há sentida necessidade de que o empregador, cumprindo as exigências legais em vigor, instruir os seus empregados, de forma expressa, sobre as precauções devidas a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho, e o empregado deve assinar termo de responsabilidade pelo qual se comprometa a seguir tais instruções, já que a saúde no âmbito trabalhista pode dar causa a pesadas indenizações e afastamentos indesejáveis.

Em razão desses riscos, preparar o ambiente laboral é essencial para a produtividade, e isso inclui uma mesa, uma cadeira ergonômica, material de informática com distanciamento e altitude adequadas, e boa iluminação. É importante, ademais, ter um espaço dedicado exclusivamente para o trabalho. Outro alerta é o cuidado com os olhos. Para isso, recomenda-se filtros de luz azul, prática de exercícios oculares e cuidado com horários noturnos.

Diante dessa nova forma de trabalho subordinado, agora inserido no ambiente doméstico/familiar na maioria das vezes, tanto o empregado quanto o empregador, devem se precaver em aspectos que o labor ordinário, concebido até então, não contava com a sua existência.

Assim sendo, e como a fiscalização do trabalho pelas Secretarias Regionais do Trabalho (SRT) será praticamente impossível nesses primeiros anos, devem merecer especial atenção as exigências legais no âmbito da saúde laboral, com destaque, como dito, ao aspecto ergonômico, ao espaço dedicado ao trabalho.

Também devem merecer especial atenção aspectos relativos à rotina laboral para que possa ser ela produtiva, planejada previamente, com existência de horários preestabelecidos de atividades e pausas, evitando-se a dispersão que o ambiente possa ensejar, assim como o limite de horas diárias trabalhadas, planejamento e agendamentos de reuniões por videoconferência necessárias para acompanhamento do trabalho nessas circunstâncias.

A necessidade de uma adequada, caso a caso, tecnologia com suficiente atendimento às tarefas e funções a serem trabalhadas, é aspecto fulcral ao teletrabalho. Nesse sentido, o empregador deverá oferecer, ou negociar com o empregado, todas as ferramentas tecnológicas para que o trabalho remoto se faça com perfeição e produtividade ou, de outra forma, que a distância não seja impedimento ou limitador de uma prestação de serviço nos termos em que contratada.

Por derradeiro, não se pode olvidar que se avizinha a entrada em vigor – em curso a “vacatio legis”, do novo marco regulatório da segurança de dados no país – a LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados, nº 13.709/2018, que será mais um desafio do teletrabalho.

Nas grandes e médias empresas, geralmente, seus empregados lidam e manipulam dados de terceiros, algumas vezes não somente sigilosos como, agora categorizados, sensíveis, cujo trato a novel legislação impõe regramentos duros e sanções antes inexistentes. Diante disso, haverá necessidade de o empregador restringir ou estabelecer níveis de acesso aos dados e, para isso, à empresa competirá manter um sistema de informática regularmente atualizado e certificado, com a utilização de software, sistemas de antivírus e conexões de internet confiáveis, já que muitos dados de terceiros neles estarão transitando.

Em conclusão podemos dizer que, independentemente da pandemia do COVID-19, essa nova forma de trabalho subordinado, a despeito de, agora, integrar o direito positivo nacional, será de franca e irreversível utilização, seguramente pelas empresas de médio e grande porte e, até mesmo, pelas menores, focadas na redução de seus custos fixos e operacionais, sem descurarmos de que o Teletrabalho contribui, fortemente, para a melhoria, de um lado, da gestão do próprio tempo e, de outro,  e qualidade de vida do cidadão trabalhador tão desgastada nesses tempos hodiernos.

Assim, contestando a máxima do filósofo Gaston Morin, de que o direito positivo, nas sociedades ocidentais modernas, sempre chagava atrasado na regulação das condutas humanas correntes, daí tratar-se de “uma revolta dos fatos contra os códigos”, devemos, de alguma maneira à Pandemia – pelo menos sua solidificação, considerar que a regência da matéria se antecipou aos fatos, e em boa hora.

Salvador 05/2021

Frederico Machado Neto
Sócio OAB/Ba – 4456